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27 Mar 2024

| diretor: Porfírio Silva

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Opinião

AUTOR

José Manuel dos Santos

DATA

19.08.2016

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ATITUDE

Durante meses, não havia noticiário que não tivesse a palavra “sanções” nos seus títulos e nos seus comentários. O risco ( e a ameaça) de as sofrermos sobressaltou, excitou, exaltou, coloriu as duas faces do novo deus que hoje faz a actualidade das televisões e dos jornais e a que chamam o Comentador Político. 

 

Para os romanos, Jano era um deus bifronte. Uma das suas faces olhava o passado e a outra olhava o futuro. Por isso, tinha égide sobre as entradas e as saídas, os começos e os finais, as mudanças e as transições, as escolhas e as decisões. As duas faces do nosso novo deus que também tudo isto comenta são as do Moralista e do Profeta. O Moralista, disse Beckett, é aquele que coça onde os outros têm comichão. E, para ser Profeta, afirmou La Fontaine, basta ser pessimista.

E assim aconteceu nestes meses de suspense e de suspeita. Os moralistas diziam que merecíamos o pior. E os profetas acrescentavam que iríamos ter o pior que merecíamos. Quase tudo o resto foram combinações e variações, interpretações e alucinações destas profecias justiceiras ou destes julgamentos proféticos.

O tempo chegou e as sanções não vieram. E assim os profetas e os moralistas ficaram desiludidos e desautorizados (por pouco tempo, acham eles) - e mal conseguiam esconder a vontade que tinham de aplicar sanções a quem não nos tinha aplicado sanções. Depois, passaram a outro assunto, continuando a moralizar e a profetizar, como se a moral fosse a profecia dos pobres e a profecia a moral dos ricos.

No meio disto tudo, pouco se disse que valesse a pena ouvir-se. E entre o pouco que se disse e o muito que se não disse, há ainda lugar para dizer que a história das sanções (ou melhor: a história das não-sanções) não foi apenas uma história diplomática de contactos, seduções, pressões, influências, mobilizações, esclarecimentos, justificações, reclamações, reivindicações. Não foi também apenas uma história psicológica de determinação, perseverança, constância, pertinácia, firmeza, insistência, resistência, resiliência. Nem sequer foi somente uma história intelectual de cálculo, habilidade, premeditação, jeito, astúcia, perícia, argúcia, arte. Foi isso tudo - claro que foi isso tudo! -, mas, antes disso tudo e acima disso tudo, foi outra coisa: foi uma mudança radical, fundadora e copernicana de atitude política (e por isso também de atitude moral), que restituiu a Portugal a verticalidade do corpo e a horizontalidade do olhar. 

Ernest Hemingway afirmou que “courage is grace under pressure”. E, no caso, disso mesmo se tratou. Do joelho dobrado e reverente, da coluna vertebral curvada e submissa, do olhar baixo e obediente, do verbo passivo e conluiado do Governo anterior, Portugal passou à posição de pé, à cabeça erguida, ao olhar de frente, à voz sonora e audível. O mérito disso é, sobretudo, de António Costa, primeiro-ministro de Portugal (com tudo o que isto deve querer dizer) e Secretário-Geral do Partido Socialista (repito: So-cia-lista, com tudo o que isto deve querer significar). 

Já sabemos que, neste tempo e nesta Europa, estamos condicionados, limitados, constrangidos, coagidos, apertados, determinados por múltiplos factores, complexas causas, diversos equívocos, pesadas obrigações, ferozes compromissos, adversas circunstâncias, severas responsabilidades e persistentes vulnerabilidades. Já sabemos também que não se deve fazer da ilusão uma forma de heroísmo, nem do milagre um modo de vida. Mas ficámos agora a saber aquilo de que já suspeitávamos – que levar consigo, vá para onde se vá, a dignidade própria e juntá-la ao cartão de visita como atitude pode não chegar para resolver os nossos problemas. Mas chega para fazer deles um sério problema para os outros.

 

AUTOR

José Manuel dos Santos

DATA

19.08.2016

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Janeiro 2024